Responsável por longas-metragens como Lavoura Arcaica, minisséries como Capitu (pela qual nutro uma enorme paixão) e episódios de novela como O Rei do Gado, o diretor Luiz Fernando Carvalho aceitou o difícil desafio de trazer às telas do cinema Clarice Lispector em um texto complicado de se adaptar. Não que a autora já não tenha sido transposta ao audiovisual (o foi muito bem feito em A Hora da Estrela, de Suzana Amaral), mas A Paixão Segundo G.H. constitui outro tipo de obra literária, muito mais labiríntica.
G.H. (Maria Fernanda Cândido) é uma mulher bela, rica, que trabalha com arte e vive no Rio de Janeiro dos Anos 60. Organizada, inteligente, mas também assombrada e sensível, após o término de um relacionamento e a demissão da empregada, passa a fazer o que normalmente se faz em dias tediosos de quem não tem muitos boletos a pagar: questiona a própria existência. É com se Cate Blanchett interpretasse Bella Baxter, porém já mais madura e restrita ao luxuoso apartamento da orla carioca, sem as visitas a Paris ou a Alexandria.
Com barulho de máquina de escrever e som de um palito de fósforo riscando a caixa, somos introduzidos ao percurso com uma janela reduzida a um 4:3 próximo ao formato quadrado dos televisores antigos e de bordas arredondadas, o que também indica que sim, o filme será focado na introspecção da personagem, seremos só nós e aquela mulher, sem muita profundidade de campo nas imagens.
Antes de iniciar o monólogo, os efeitos de distorção das imagens causam uma sensação onírica e alucinatória enquanto a protagonista faz bolinhas de miolo de pão na mesa do café. O filme em si não chega a ser uma reinterpretação radical do texto, como Júlio Bressane fez com Dom Casmurro e seu Capitu e o Capítulo. Ali havia uma história linear, com personagens de angústias e desafios bem desenhados. Mas o que faz A Paixão Segundo G.H. beirar o experimental é o próprio texto base de Clarice Lispector, não necessariamente a adaptação cinematográfica. Temos na fundação apenas uma mulher, seus pensamentos e suas memórias. E uma barata.
Além de espelhos que fragmentam a protagonista em partes individuais, a direção de arte de João Irenio Maia e Mariana Villas-Bôas compõe ambientes e objetos contemporâneos a 1964 cuidadosamente dispostos e fiéis ao que seria o apartamento de G.H. Azulejos de tijolinhos cor celeste na cozinha, um moderno (para a época) telefone turquesa na sala e um suporte para ovos cozidos na mesa das refeições refletem a classe social daquela protagonista, bem como o espírito daquele tempo para aquela bolha burguesa específica.
O ritmo surpreendentemente não representa um slow cinema como os filmes de Apichatpong Weerasethakul, mas às vezes o contrário, um fast cinema, uma corrida de um fluxo de consciência que despeja uma média elevada de palavras elegantes por minuto, um Tudo Em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo para mentes artisticamente refinadas, quase para quem é tachado pelos outros como um Pernalonga de batom - e que provavelmente não conheceriam a expressão "Pernalonga de batom". Substitui-se a montagem de cortes rápidos, comum a certo tipo de cinema moderno, por algo mais contemplativo e poético, porém, ao mesmo tempo, também de passagens aceleradas pelo texto voraz.
Adaptar algo assim, portanto, pode se transformar em armadilha ou virtude. Por mais talento que a atriz tenha, é difícil transmitir por 2 horas passagens como “fragmento hieroglífico de um império morto ou vivo” sem o cansaço causado pelo imenso peso do texto, que por alguns momentos rasteja e requer uma atenção triplicada ao fluxo de consciência que funciona muito bem nas páginas literárias – você sempre pode guardar pra si sua ignorância e reler um parágrafo três vezes em um livro mais complicado, mas que se constitui deveras arriscado para se converter em audiovisual, muito pela velocidade que pode torná-lo um tanto quanto impenetrável em determinados momentos.
Assim como na técnica literária de Lispector, essa associação de ideias encadeadas pelo que se vê no presente e pelo que se absorveu no passado vai fluindo depressa, mas não menos instigante: cita-se uma mão imaginária que conduz ao sono, mas sem corpo. O monstro da consciência se converte em uma barata do tamanho do Texas (ou a barata se converte em monstro da consciência) dando continuidade à ousadia do projeto, em imagens de cores negativas que assusta, reflete o asco, causando a impressão que o inseto possui uma máscara com grandes dentes (eu me pergunto por quanto tempo eles filmaram essa barata, quantas baratas e quantos takes foram necessários. This is Cinema.).
Passado e presente se misturam, G.H. fala sobre amantes e amores, se masturba (mas poeticamente), converte suas preocupações amorosas em comentários sobre a alienação típica da burguesia (o país vivia as tensões de um golpe militar), sobre a feminilidade e sobre classes sociais. Um emaranhado de alguém apavorado pelo futuro e que titubeia em relação ao próximo passo, cuja segurança da infância e da juventude já se foi, restando agora o oposto dessa ignorância, mas ainda distante da compreensão tranquilizante, assim como longe da incompreensão acomodada.
Apesar de árduo, é impossível negar a inspiração e beleza recompensadora do texto e da adaptação, tanto em seus fragmentos isolados (estar feliz como o diabo na alegria indiferente do mundo de ratos, baratas e tarântulas, ou perder a terceira perna que a faz um tripé estável, mas a impossibilita de andar) e como um todo, em suas reflexões sobre a força, o amor e a vida. A iluminação que busca na beleza complexa que existe em amar o desconhecido chega, mas sem antes passar pelo entendimento e aceitação da barata, pelas águas de março que fecham verões.
Nota: 3/5

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