top of page

A Vida Invisível | Crítica

  • Foto do escritor: Messias Adriano
    Messias Adriano
  • 29 de set. de 2019
  • 3 min de leitura

Atualizado: 17 de mai.


ree

Há quem franzirá a sobrancelha em tom de desagrado ao perceber que a divulgação de A Vida Invisível abraça de forma frontal a palavra “melodrama”. Existe uma visão preconceituosa quanto ao gênero, o qual normalmente é associado a novelas de trama rasa e que forçam a todo custo o choro do espectador. Conhecendo esse estigma, o diretor cearense Karim Aïnouz subverte as expectativas dos desavisados e faz uma obra repleta de camadas, sejam elas políticas, sociológicas ou dramáticas.


O filme nos apresenta as irmãs Eurídice (Carol Duarte) e Guilda (Julia Stockler), ambas por volta dos 18 anos de idade, filhas de pais portugueses conservadores e vivendo num Rio de Janeiro da década de 50. Há uma conexão magnética entre as duas personagens logo no início do longa. O sentimento fraterno é potencializado pela naturalidade na qual assuntos triviais são ditos (“deu até vontade de fazer cocô.”, Guilda fala antes de um encontro) e também pela habilidade da direção quando, por exemplo, em uma determinada cena de conversa, a câmera permanece parada com as duas personagens fora do quadro, e isso ocorre apenas porque, no momento em que o assunto envereda para o sexo, as duas se aproximam fisicamente e reaparecem por completo na tela.


A trama segue, a vida segue e essa proximidade física é rompida, dando início ao drama central das personagens. Os planos das duas tomam rumos diferentes do imaginado e sonhos são interrompidos pelos acontecimentos comuns à sociedade da época (ora, e também da atual). A ilusão de viver feliz na Grécia é substituída pela criação de um filho sem pai, o plano de estudar música em Viena é adiado por um casamento com um burocrata que faz sexo com a agressividade de quem aplica um golpe em uma briga. A lente grande angular utilizada na cena da manhã seguinte a da noite de núpcias de Eurídice reflete a estranheza e falta de pertencimento àquele local, àquela vida.


E para ingenuidade perdida, resta a adaptação à injusta realidade. É curioso, por exemplo, perceber como cada uma das duas usa o sexo como ferramenta de proteção: Guilda “domina” um homem nos fundos de um boteco para que ele goze rápido e ela possa voltar logo pra casa. Anos depois e mesmo sem ter contato com a irmã, Eurídice usa a mesma estratégia no marido para “acalmá-lo”, após dar a notícia de que havia sido aprovada em um teste para estudar música.


Direção de arte, fotografia e trilha sonora fazem um trabalho competente, vide a cena que nos transporta a um boteco apertado, unida a um de batuque contagiante: é a singularidade instigante das noites boêmias no subúrbio carioca na década de 50. Se não era assim, é exatamente daquela forma que imaginamos aquele Rio de Janeiro. As cores verde e vermelho também exercem um importante papel estético e principalmente narrativo, visto que acompanham as personagens em momentos chaves da história, seja em uma peça de roupa, seja nas plantas dos jardins que compõem diversas cenas.


ree

Acima de tudo, A Vida Invisível se ancora em uma virtuosa força feminina, que ainda encontra espaço para incluir uma terceira personagem importante, Filomena (Bárbara Santos), a mais calejada das mulheres dessa história: “É menino ou menina? Menino... Sorte a dele.” São as palavras que ela diz quando Guilda volta do hospital após dar a luz. Por mais superficial que a fala possa parecer fora do contexto, é uma das poucas vezes onde o texto do melodrama abraça uma linguagem mais explícita.


Isso porque a obra de Aïnouz apresenta também um subtexto sociológico mais profundo, uma visão que busca, de certa forma, inverter o colonialismo brasileiro: a família pura lusitana é desfeita e os cacos que restam vão, aos trancos e barrancos, formando laços afetivos sinceros por meio do carinho e cumplicidade entre uma descendente de portugueses e uma brasileira nata, deixando por herança um barraco transformado em lar fraterno, não pelo sangue, e sim pelo resultado da objeção às normas patriarcais impostas às mulheres.


E é o feminino que a narrativa tem como centro gravitacional. Quem é a Eurídice? O que a Guilda representa? Não são heroínas clássicas, não tiveram casamentos bem-sucedidos, são talentosas, mas sequer iniciaram uma carreira. O amor entre as irmãs e a presença de uma na outra nos leva a imaginar uma realidade diferente: tivessem elas permanecido juntas, a vida provavelmente teria sido melhor.


No entanto e tristemente, a trama segue como a vida real. E nessa severa realidade, as Eurídices e as Guildas são nossas mães, as Eurídices e as Guildas são nossas avós, no Rio de Janeiro ou em qualquer lugar do mundo: mulheres invisíveis a olho nu, mas que foram grandes, enormes em tudo aquilo que poderiam ter sido.


*Texto publicado originalmente no site Canal Claquete em setembro de 2019, em cobertura para o Festival Cine Ceará.


Nota: 5/5


ree


Comentários


bottom of page