A expansão e aproveitamento da terra dos países nórdicos aparentemente não se deu de forma tão rápida quanto no restante da Europa. Vastos campos improdutivos, como os mostrados no excelente Terra de Deus (dirigido pelo islandês Hlynur Pálmason), eram objeto de incentivo pelos reis e governantes da época, e as pessoas que recebessem a missão de cultivar aquele local que se virassem pra tirar algo dali. Parte dessa exploração e expansão permeia a trama de O Bastardo.
Na Dinamarca da metade do Século XVIII, o ex-capitão do exército Ludvig Kahlen (Mads Mikkelsen, de Hannibal e 007 Cassino Royale) deseja construir uma colônia e plantações em um local tido por improdutivo por quem o conhece. Mesmo assim, o homem insiste em cultivar a terra na qual diversas outras pessoas esbarravam na dificuldade de plantar qualquer coisa.
Após a autorização real (principalmente por Kahlen utilizar recursos próprios, e não do Estado), a montagem evidencia o passar do tempo e das estações com cortes secos em vez de transições suaves, o que deixa tudo mais atraente e transparece o suor que o protagonista terá que derramar para preparar a terra. Mas não seria somente com o solo que Khalen teria dificuldades, visto que o arco do ex-capitão é cercado de empecilhos, da recusa das pessoas para trabalhar naquela terra, a um nobre poderoso que se julga dono do local.
O filme trata o protagonista não como alguém absolutamente superior e de atitudes típicas de heróis, o que provavelmente seria o caminho mais fácil num drama que busca elevar o valor do esforço e da persistência contra as adversidades. Confrontado com o preconceito em relação a ciganos em determinada cena, por exemplo, Khalen cede aos pedidos daqueles que desejam excluir uma representante do grupo daquelas terras, mesmo que não concorde, o que muito provavelmente seria um movimento típico e coerente com os de um ex-militar do Séc. XVIII que queria ter suas próprias terras. Aliás, mais do que falar “quando eu cheguei aqui, isso tudo era mato”, também motiva o protagonista um título nobiliárquico que lhe foi prometido em caso de sucesso na empreitada.
Dito isso, ajuda bastante que o talento de Mads Mikkelsen opte por exibir um estoicismo contido em Ludvig Kahlen. Determinado a alcançar seus objetivos, o ex-militar fará de tudo pra conseguir cultivar aquela terra, exibindo inteligência e experiência, mas também uma certa ganância que o afasta das pessoas que lhe dão suporte, um egocentrismo que o filme aproveita muito bem como outro empecilho da trama.
Nesse sentido, é curioso e significativo que a direção de fotografia tenda a enquadrá-lo em planos mais fechados mesmo quando está nas grandes plantações, ou dentro da própria casa, enquanto outros personagens são constantemente exibidos em planos abertos com os grandes pastos ao fundo. Além disso, as constantes mudanças de foco das lentes, ora destacando personagens em primeiro plano, ora focando somente no que está no fundo do espaço, servem não somente para vermos a reação de outra pessoa em uma conversa, mas também para dar importância a atitudes ou gestos, como o nobre Frederik De Schinkel (Simon Bennebjerg, de Culpa) encher uma taça de vinho até a borda.
Schinkel (ou De Schinkel, como o personagem insiste em ser chamado), aliás, representa o pior aspecto do filme. Com um rei que nunca aparece (mas que também não faz falta), cabe ao nobre mimado a função de principal ameaça para Khalen, mas cujas escolhas da trama o transformam em um antagonista muito fraco. Tal homem, o mais importante da região, grita frequentemente com empregados e humilha o protagonista, por exemplo, em uma cena na qual exige que Khalen coloque uma peruca extravagante numa festa, o que atrai olhares que constrangem o ex-capitão.
E não vai muito além disso. O personagem é dotado de um maniqueísmo exacerbado, de sadismo nas torturas e de uma ganância justificada de forma rasa, apenas “porque sim”. Constituído quase como um vilão nervoso dos filmes da Disney mais rasteiros, só faltava que De Schinkel desse uma risada maléfica em algum momento da trama.
Por sorte, existem outros conflitos e relações girando ao redor do protagonista, como a de uma criança como elo entre ele e Ann Barbara (Amanda Collin), mulher fugitiva que a qual ele contrata para trabalhar na casa. As muitas conexões de amizade e amor, os embates com colonos ou com outras pessoas ligadas a De Schinkel chamam muito mais atenção do que especificamente as cenas que envolvem o nobre hostil de forma direta.
Com ares de Western, O Bastardo constitui, portanto, um bom drama que aperta os botões corretos para envolver o espectador em sua trama, capitaneado por uma performance competente de Mikkelsen como protagonista dessa quase-tragédia.
Nota: 4/5

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