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O Sequestro do Papa | Crítica

Foto do escritor: Messias AdrianoMessias Adriano

papa segurando menino no colo

Ao enraizar preconceitos contra judeus e levar a igreja na direção de movimentos reacionários, o Papa Pio IX exerceu um papado controverso (para não dizer patético), com diversas decisões questionáveis e inúmeros conflitos com Estados nacionais (incluindo uma questão envolvendo a Maçonaria, Dom Pedro II e o Império Brasileiro).


Mas nenhuma polêmica chega perto do rapto de um menino judeu pela igreja católica, ato que ocorreu sob ordens do pontífice. Na Década de 1850, a Itália ainda não estava unificada e havia a divisão dos chamados Estado Papais, ou estados pontifícios, onde, em resumo, o Papa tinha poderes de rei. Na região de Bolonha, oficiais da igreja católica abduziram o garoto Edgardo Mortara, que tinha somente 6 anos de idade quando foi retirado do convívio familiar.


O motivo? Chegou aos ouvidos da igreja que o menino havia sido batizado secretamente, e tal ritual católico impediria o convívio com a família judia do garoto. Na marra, a igreja justifica o poder para tal ato pelo Direito Canônico, mas cuja base é advinda de dogmas simplórios: não se questiona, nem se discute tais decisões, porque elas vêm de deus.


papa mandando o cara lamber o chão

Nesse sentido, o diretor italiano Marco Bellocchio faz de O Sequestro do Papa uma crítica contundente à religião. Para um sistema que em tese deveria pregar a misericórdia e a compaixão, o roteiro retrata a agressividade do rapto não somente pela força física do ato em si, mas também aplicando violência simbólica na interrupção de atos íntimos, a partir do momento em que as autoridades da igreja, por exemplo, chegam na casa da família para fazer a primeira abordagem: à noite, eles embargam a amamentação da mãe Marianna (Barbara Ronchi) ao caçula da família, irmão de Edgardo.


Ao tomar tais decisões na trama, o drama e o perigo da situação são potencializados, algo que também é complementado pela direção propositalmente exagerada e grandiloquente de Bellocchio. No entanto, o roteiro (que o diretor divide créditos com Susanna Nicchiarelli) acertadamente faz questão de balancear o melodrama na figura do pai Salomone (interpretado por Fausto Russo Alesi), personagem que, por exemplo, ao não querer que o filho sofra, evita verbalizar para o garoto que a família está muito mal, mesmo que a mãe desfaleça. O homem, aliás, está sempre buscando as soluções que estavam ao seu alcance, mas também mostrando uma obediência à igreja derivada do medo.


Esse pavor e culpa católica são logo transferidos ao infante abduzido. Não é coincidência que a criança se veja impressionada toda vez que olha para a imagem de um homem violentado, sofrendo com uma coroa de espinhos, sangue escorrendo pelo rosto e pregos nas mãos e pés, principalmente após uma freira apontar e lhe dizer, como quem comenta futebol: “Ah, ele era judeu. Que nem você.”. Existe, aliás, uma bela passagem onírica envolvendo Cristo crucificado e o garoto que está entre as melhores passagens do filme, talvez por expor a inocência da criança diante da situação pela qual está passando.


A montagem faz questão de focar muitas vezes nas imagens desse Cristo crucificado e do rosto angelical do menino fofo (interpretado por Enea Sala), assim como contrapõe algumas vezes a mimese das crianças aos gestos parecidos nas duas religiões, judia e católica, como levar as mãos ao rosto durante a oração. Ainda, o filme aproxima a religião católica do judaísmo ao nos mostrar missas cristãs sendo celebradas paralelamente a orações antes das refeições da família hebreia, ao mesmo tempo que aproxima o poderoso catolicismo a algo burocrático e cruel ao inserir uma montagem paralela de celebrações cristãs e de julgamentos em tribunais com decisões favoráveis à religião papal.


edgardo mortara bolado

Tratando o papa nada pop como alguém que frequentemente se vê longe de suas faculdades mentais (nesse caso, por meio de pequenos escapes visuais animados e lúdicos), a interpretação que Paolo Pierobon faz do “Santo Padre” é a de um homem megalomaníaco e apegado ao poder, sentimentos que são repassados não só pela caracterização acertada do personagem, com o buço suado e quase babando ao proferir palavras cruéis (como ameaçar jogar os judeus de volta aos "buracos dos guetos de onde saíram"), mas também pela ambientação feita pela direção de arte, sempre colocando o líder católico em cômodos cuja distância do piso ao teto é enorme, normalmente cercado de lindas e detalhadas pinturas que exalam o poder e pompa que a igreja possuía.


Toda essa autoridade e força da igreja vão paulatinamente levando o garoto Mortara ao que parece ser o objetivo do sequestro: uma espécie de lavagem cerebral alimentada pelo medo, uma Síndrome de Estocolmo patrocinada pela força. Na mesma toada, todo esse poder e preconceito para com os judeus ajudaram a proliferar as raízes de uma guerra que viria alguns anos depois, consequência da ascensão do fascismo e da aproximação da igreja católica com Mussolini.


Caso o distanciamento desses eventos históricos possa criar a ideia de que os tempos são outros e essa lógica violenta mudou, más notícias: o Papa Pio IX foi beatificado pela mesma igreja católica no ano 2000.


 

Nota: 4/5

nota 4 estrelinhas de 5

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