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Garra de Ferro | Crítica

Foto do escritor: Messias AdrianoMessias Adriano

Atualizado: 22 de abr. de 2024



Tentar entender a organização do wrestling profissional na América do Norte é um tanto quanto complicado. Existem diversas associações, às vezes uma não necessariamente ligada à outra, divisões que não seguem as demarcações territoriais dos estados, diversos tipos de campeonato, com regras e dinâmicas diferentes, sendo hoje em dia a WWE (World Wrestling Entertainment) a mais importante produtora do ramo.


Tão importante que o canal no YouTube deles possui mais inscritos que o da NFL, de beisebol, da NBA, de basquete, e do que a própria FIFA. Apesar de não ser tão popular no Brasil, esse tipo de wrestling profissional faz bastante sucesso em diversos países mundo afora.


Mas diferente do que muitos desavisados podem pensar, não se trata de um esporte como boxe ou MMA. Trata-se de uma mescla entre artes cênicas e luta de verdade. Existe um script para tudo o que ocorre: os lutadores sabem o que vai acontecer, que golpes darão, quem deve ganhar a luta, e o juiz está ali com a função dupla de performar e de pôr ordem para evitar que alguma lesão mais grave aconteça em caso de exaltação dos ânimos (existem golpes que podem desclassificar – de verdade – um ou outro lutador).


E sim, pode acontecer também de os lutadores saírem do script, ganhando uma luta a qual deveriam perder, por exemplo. Nesses casos, como há plateia e é tudo ao vivo, não há muito o que fazer na hora, mas por óbvio que haverá consequências posteriores. Os responsáveis pela produção e roteiro criam uma historinha que se estende por meses, às vezes com grupos de mocinhos e grupos de vilões, fazendo arcos dentro dos episódios semanais da temporada. Se algo ocorre fora desse script pré-concebido, todo um planejamento é desfeito e precisa ser pensado novamente.



Mas Garra de Ferro está menos interessado em detalhes do wrestling profissional do que eu estive para produzir esse texto. O filme se inspira na história real da família Von Erich, cujo pai e 4 filhos fizeram parte do mundo desse tipo de entretenimento. Como diversas tragédias aconteceram com aquela família, ela ficou conhecida por ser “amaldiçoada” no fim dos Anos 80.


O diretor Sean Durkin inicia o filme com um ringue iluminado de forma imponente, com um preto e branco pomposo e que remete a clássicos (me fez lembrar Touro Indomável nessa abordagem, inclusive). Quem desce o sarrafo em outro cara é Fritz Von Erich (Holt McCallany), justamente o patriarca da família, mas um corte abrupto nos leva para o mesmo Fritz Von Erich sendo carinhoso com os filhos e com a esposa na saída do ginásio após essa mesma luta.


A ambição dele é alta: ganhar o título de campeão dos pesos pesados do torneio, chegar ao topo. A condução da cena dentro do carro é bonita: a câmera acompanha o rosto dos garotos indo de um lado pra ver o pai prometendo sonhos, ao outro lado pra ver a mãe cética e preocupada com os gastos financeiros.


Ao mesmo tempo que trabalha bem os contrastes mais evidentes (corte brusco do homem golpeando o oponente x o mesmo homem brincando com os filhos na saída do ginásio), de uma forma geral, também há o lento contraste da percepção que percebemos no pai, daquela cena inicial em preto e branco, ao desenrolar do filme em cores dessaturadas: se pensávamos que Fritz Von Erich poderia ser alguém carinhoso com a família, vemos que a brutalidade e a pressão ganharam muito mais corpo no trato do homem com as pessoas, pois o plano dele ser campeão não dá certo e isso faz com que esse pai jogue nos quatro filhos a responsabilidade dos próprios sonhos. Fritz Von Erich agora possui sua própria companhia promotora de wrestling (WCCW) e daí o filme se desenrola.


De maneira geral, Garra de Ferro mostra que não é porque o wrestling é combinado que viver disso seja fácil: há trabalho em treinar, profissionalismo em levar socos de maneira crível, cair ou discursar para inflamar a plateia. O filme faz questão de mostrar que aquilo é um trabalho como qualquer outro ligado à indústria do entretenimento profissional, exigindo esforço e que se abra mão de muito para crescer dentro da área.


A relação pai e filhos é danosa. Fritz Von Erich faz um ranking dos garotos no café da manhã, dizendo qual o preferido, qual o que menos gosta, mas frisa que o ranking pode mudar: depende do desempenho dos garotos no ringue e nos esportes. Que compreensivo.


Em outro momento, Mike Von Erich (Stanley Simons), um dos filhos mais interessado em artes e música e menos interessado em músculos, fala sobre ângulos de câmera em um almoço de família e o pai responde: “Estamos falando sobre uma luta, não sobre ângulos de câmera. Quem diabos liga para ângulos de câmera?”. Curiosa escolha de diálogo, visto que existem relatos de que esse filho, na vida real, além de não demonstrar interesse no wrestling inicialmente, manifestou o desejo de trabalhar como operador de câmera das lutas, algo que foi rechaçado pelo pai.



Mas se Fritz Von Erich não liga pra ângulos, aparentemente o diretor Sean Durkin liga bastante. Garra de Ferro sempre encontra maneiras inusitadas e elegantes de nos mostrar determinadas situações, seja ao sobrepor a imagem dos três irmãos, estabelecendo ainda mais a conexão entre eles, seja ao posicionar a câmera no alto, filmando em plongée (ângulo de cima pra baixo) e com um lentíssimo zoom por uma abertura do teto enquanto uma decisão desagradável é anunciada pelo pai no vestiário do ginásio. São passagens que, trabalhadas por alguém menos ambicioso, provavelmente entregaria plano/contra-plano comum.


Ao mesmo tempo que busca o inusitado em situações simples, o contrário também ocorre: uma luta importante é filmada não de maneira suntuosa e com vários cortes, com montagem explorando uma quase-derrota e uma glória no fim. O filme nos mostra a mãe sentindo saudade de um dos filhos acompanhando a luta pela tv de casa. Uma escolha que está ligada ao principal interesse do filme, focado mais drama real dos Von Erich do que nas competições propriamente ditas.


Apesar do pai bruto, os irmãos são estranhamente assertivos. Kevin (Zac Efron), por exemplo, diz ao irmão que ficou com raiva de uma determinada situação, mas faz questão de destacar que foi da situação, não do rapaz. O irmão responde que entende, que faz sentido que ele tenha ficado chateado, pede desculpas e seguem. Há uma fuga do estereótipo de “lutadores brutamontes pouco inteligentes“: esses irmãos conversam de maneira aberta e por diversas vezes percebemos que os garotos tomariam decisões sensatas caso o pai não exercesse um controle pérfido sobre eles.


Então isso gera sentimentos e sonhos frustrados por uma cultura que ensina os homens a não chorar e que estava bem latente nesses irmãos. No meio dessa pressão, herança do pai, na busca por questionar uma masculinidade prejudicial, Garra de Ferro constrói uma dramaticidade que funciona muito bem, principalmente por quase sempre fugir do simplório, seja na forma como filma uma conversa, seja na construção do protagonista Kevin Von Erich após as derrotas no ringue e sobressaltos trágicos da vida.


 

Nota: 4/5


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